quinta-feira, 11 de junho de 2009

Benjamin Banana

Benjamin estava triste. Benjamin estava triste porque dessa vez não havia dúvida de que a velha árvore no quintal estava morrendo e teria de ser cortada: a velha laranjeira onde costumava talhar seu nome com o canivete que lhe dera seu falecido avô; de onde costumava ouvir a voz de seu bom e manso pai chamando para o almoço; velha laranjeira onde pela primeira vez beijou Melina, a filha da cozinheira, e tossiu as fumaças de seu primeiro cigarro.

Enquanto caminhava pelas ruas da pequena cidade, sentia uma tristeza profunda porque, mais cedo ou mais tarde, a vida à sombra da velha laranjeira em breve não passaria de uma tola e aguda nostalgia, um desamparo sem sentido ou consolo que o tornara cabisbaixo desde que acordou. “Mas eu preciso deixar de ser besta! Até porque já tenho 13 anos, e em um mês farei 14, e ficar chorando e andando com a cabeça encolhida nos ombros por causa de uma árvore velha é um pesar idiota e desnecessário”. Mas Benjamin sabia que não seguiria seu conselho, pois já percebia que as lágrimas começavam a dançar em cima de seus olhos.

Quando chegou na escola disse a si mesmo para não pensar mais na velha árvore, porque agora iria dançar. Era o ensaio da quadrilha para as festas juninas. Sim, sim, iria dançar como o planejado e enquanto rodasse não pensaria em nada. Iria se misturar ao mundo dos homens, esquecer por alguns minutos que não era como os outros e que todos olhavam com estranheza para a marca em sua testa. Com sorte a pequena e ruiva Lívia seria o seu par e ela o traria para perto de si e o colocaria no meio do mundo dos homens... Passou pelo porteiro (“Boa tarde, seu André”). Subiu correndo as escadas. Mas quando chegou ao salão o professor já havia separado as duplas para a dança – e agora ele teria que dançar com a grande e tola Helena, que sempre caia ao girar, e sempre que caia lançava seus olhos bobos e desconcertados para ele, e sempre que olhava para ele tentava sorrir, mas não sabia como.

A dança começou. Dançou sem graça e como uma máquina ao lado da grande e tola Helena; a pequena e ruiva Lívia girava nos braços de Artur, que usava chapéu, não tinha laranjeiras no quintal e sabia sorrir. Nesse momento Benjamin compreendeu que nada é mais desolador nesse mundo do que ver aquela que é amada com os olhos fixos em outra pessoa que não você. Girando nos braços de outro. Oh, quão terrivelmentemente amedontrador é ver os olhos e o sorriso de alguém presos em qualquer ponto distante de onde você está e saber que cada giro leva tudo isso para longe e você fica no mesmo lugar. A pequena e ruiva Lívia girava como a folha de outono que cai. Como o pássaro que se finge de morto. E como mil redemoinhos ensandecidos do campo. A barra de seu vestido rodopiava e a cada segundo possuia uma nova e exuberante cor. Seu corpo era como a pluma. Como uma frágil sacola plástica nos torvelinhos do vento do outono. Seu sorriso era como as páginas de um livro que acabamos de comprar.

Benjamin estava arrependido. Arrependeu-se de ter ido ao mundo dos homens, de ter se misturado ao mundo dos humanos normais onde simplesmente não se encaixava e todos podiam ver a marca em sua testa. Deveria ter ficado em casa, lendo algum livro embaixo da velha laranjeira, em despedida. Sim, pois as pessoas não diziam que eram todos esses livros que tinham feito dele essa coisa estranha e solitária, esse ser apático a parte do mundo? Não ouviu outro dia um amigo de seu bom e manso pai dizendo-lhe que ¨não faz bem a um menino dessa idade andar metido com essas coisas¨? Arrependeu-se porque já tinha 13 anos, e em um mês faria 14, e ainda não sabia tomar uma decisão acertada.

Benjamin bocejou. E aquele era o símbolo de sua desgraça, pois o sono é o símbolo e o sacríficio e o casulo das pessoas tristes e é lá que elas se guardam delicadamente da boa morte. Pediu lincença ao seu par. Disse ao professor que ia ao baheiro. Precisava fumar.

Saiu do colégio pela porta dos fundos. Encostou-se no velho muro onde riscavam seu nome ao lado do nome das garotas e faziam xixi todos os garotos da escola. Acendeu o cigarro e ficou mexendo na grama com os pés, olhando para as árvores. Estava arrependido de ter acreditado que fazer parte da dança fosse uma boa idéia. Estava arrependido de ter acreditado que poderia dançar. Estava consciente e resignado de que aquele não era seu mundo, mas que de longe poderia contemplá-lo e aquilo lhe bastava para ser feliz, pois seu lugar verdadeiro era com a vida melancólica das velhas árvores moribundas, das folhas de papel gastas e das meninas que giram a distância. Distantes, nunca perto.

Lembrou-se que dessa vez não havia dúvida de que a velha laranjeira no quintal estava morrendo e teria de ser cortada. Ouvia a música e sabia que lá dentro a pequena e ruiva Lívia estava girando, girando e girando, rodopiando para cada vez mais longe... E foi em meio a esses pensamentos e sensações que Benjamin finalmente compreendeu que, seja garota ou laranjeira, todas as coisas do mundo estão sempre morrendo ou girando e, de uma forma ou de outra, vão-se embora para nunca mais.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Teoria da Conspiração

Alfredo foi o inventor do ornitorrinco. Tudo começou com uma brincadeira, quando, há muitos anos atrás, durante uma temporada de intercâmbio na Tasmânia, entre uma partida de rugby e outra, Alfredo decidiu se divertir às custas dos velhinhos com quem morava. Decidiu criar um bichinho que, ao mesmo tempo, divertisse e assustasse o casal. Rugby sempre causa desses transtornos.

Para quem não sabe, o ornitorrinco é um marreco com um enorme tumor felpudo, um cisne que esqueceu de ficar bonito – e de frequentar a quimioterapia -, ou ainda os dois juntos.

Mas todos levaram tão a sério aquela coisinha grotesca que Alfredo criou, que, como ele não sabia falar muito bem inglês, não conseguiu explicar que era só uma brincadeira. Todos se maravilharam. Rapidamente o governo australiano ficou sabendo do acontecimento e apareceu no local para averiguar o estranho aparecimento do bichinho. Pensando em aumentar o turismo, o consumo de álcool e os serviços dos hospitais psiquiátricos, fizeram uma proposta irrecusável: comprar ornitorrincos para colocar nas lagoas e rios de toda a Austrália! Pagando caro por isso, desde que Alfredo guardasse segredo sobre a fabricação do bicho. (Cada ornitorrinco custava mais de meio milhão de dólares e dois bumerangues aborígenes aos cofres australianos). Alfredo aceitou a oferta.

De volta ao Brasil, criou uma pequena fábrica de ornitorrincos em sua casa em Birigüi. E, trabalhando sozinho, chegou a fornecer mais dois mil ornitorrincos nos primeiros anos. Depois o governo australiano sugeriu uma produção de 200 ornitorrincos por ano, e, como Alfredo não tinha ninguém mais a quem ofertar os ornitorrincos, ficou nessa mesmo.

Alfredo prosperou. Evoluiu em sua técnica. Chegou a ter inveja ao imaginar que alguém havia inventado o kiwi antes dele (a ave e a fruta).

Um dia, num bar, Alfredo viu entrar um homem que achou incrivelmente parecido com alguém conhecido... Qual não foi o susto de Alfredo ao perceber que aquele homem se parecia com ele mesmo! Alfredo sentiu uma sensação esquisita no estomâgo e esfregou a cara. Perseguiu o estranho com os olhos, mas rapidamente ele se misturou à multidão que dançava no bar.

Alfredo estava aturdido! Voltou para casa com o rosto do estranho nos olhos. Com o passar do tempo, Alfredo começou a ver seu rosto em todas as pessoas, por todo lugar que andava. Nos seus últimos dias, numa casa de repouso, seu irmão não deu atenção quando Alfredo lhe disse que o governo australiano havia criado uma fábrica de clones para atormentá-lo e proteger seus segredos ambientais e políticos. Deu menos atenção ainda quando, dias após a morte de Alfredo, se viu dono de uma herança de 197 milhões de dólares australianos e incontáveis buremangues aborígenes. Comprou um iate, encheu de Doritos, tirou uma carta do war que mandava conquistar Europa, África e um outro continente a sua escolha e saiu pelo mundo, esquecendo o assunto. Navegou os sete oceanos, mas, por algum motivo oculto, jamais atracou em qualquer país da Oceania.

P.S.: O governo australiano procura urgentemente novos fornecedores de ornitorrincos. Interessados, procurar, sigilossamente, a embaixada mais próxima.



Melquisedec f.,inventor das chincilhas,
Salvador - BA

Poeminha de amor sem-título nº1


E todo teu passado sem mim me causa raiva

Saber das que passaram antes de mim;

das outras tantas que de tua boca provaram,

a minha tristeza provocaram.

E de todo o meu passado

que antes de ti vivi,

muita solidão ao redor de mim.

Quando te vi, sorri…

E agora deveria eu saber

Que antes de nós não havia,

apenas pré-existia.

O que antes de nós acontecia,

à medida que nascemos, falecia.

O que pós-nós acontece,

à medida que vivemos, floresce.

sexta-feira, 10 de abril de 2009

Besteira nº 2

Por incrível que pareça
uma anã segurando um guarda-chuva
é a portadora do novo céu cor de rosa.

(Fruto da hora na qual quanto mais o tempo passa, mais cedo fica)


[Besteira nº 1: http://luzdelfuego.tumblr.com/post/94794172/besteira]

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

A existência dos vivos enquanto mortos.

Por que motivo sombrio e sórdido teremos de permanecer nessa vida? Aliás, será que podemos chamar de vida esse definhamento? Meus únicos passatempos são ver novos tipos como eu ressurgindo a todo instante, tão freqüentemente quanto nascem os humanos, e cogitar que inspiração divina ou casual nos pôs nessa situação decrépita, nesse jogo incessante de absurdo mal gosto.

Permita-me explicar, mas sou dos que não estão vivos: zumbis, mortos-vivos, demônios, anomalias... Como queiram. Tenho certeza de que já ouviu falar de nós. Estivemos – posso usar o plural, mesmo que nessa época eu ainda não fosse um de nós – bem, estivemos nos jornais, falaram diariamente de nós e depois nos esqueceram, como pratos que perdem o sabor ou roupas que perdem o brio. Não peguei o momento de fama, a época do frisson; azar! Que me importa agora?! Agora é só o tédio, como em todas as existências.

Contento-me, nestes momentos de ócio, ou seja, quase o tempo todo, em escrever, catalogar e divagar. Coisas que fazia com freqüência antes de me enjaularem nessa decrepitude ambulante.

Há, entre nós, vários tipos:

1) Os arruaceiros: são, em geral, os que mais chamam atenção. Alguns já tem o cérebro tão avariado que nem sabem o que estão fazendo. Mas a maioria sabe muito bem o que busca. Eles se aproveitam, digamos, de sua situação invulgar e apavorante para assustar, assaltar, praticar estupros e outras violências, como crianças sem critérios. Agem como vermes asquerosos, amorais. Entretanto, são eles nossa referência, nosso cartão de visita. A maioria dos vivos não pensam em nós senão nestes termos.

2) Em segundo lugar existem os normais. Embora estigmatizados pelo exibicionismo dos arruaceiros, estes são a maior parte de nós: pacatos, tristes, entediados, exasperados pela incessante surpresa da nova situação... Jamais conseguem sair deste torpor, coitados. O momento de êxtase e o choque da descoberta causam-nos uma paralisia agitada, convulsa, delirante... Não conseguimos reconhecer quem somos e porque estamos dessa forma... Vivos, embora mortos. É a mais aterradora das experiências! Ninguém que já tenha passado por isso sabe explicar a sensação. Os normais jamais conseguem superar esse estado de paralisia; sobrevivem numa inércia cerebralmente agitada e incrédula até o fim. Parece-me que suas novas existências não passam apenas de um prolongamento de suas existências anteriores como humanos: melancólicos e apáticos.

3) Por fim, em minha lista, temos os inconformados iludidos... Ah, quão irônicos eles são! Querem acreditar que ainda têm vida; lutam para prosseguir nessa existência sem sentido, para amenizar e retardar essa decadência. Alguns são ilustres; Tiveram anteriormente uma vida de intelectuais, tal qual eu. Aparecem hoje na TV bradando sobre “nossa causa”. Pedem respeito, tolerância. Para quê?

Claro que essas categorias são apenas uma catalogação sistemática e ideal da minha mente. Em realidade, um arruaceiro sempre pode substituir um dia de bagunça por um pouco de reflexão e um intelectual pode chegar a um ponto de loucura tal que o leve a agir como um delinqüente.

Sim, pois definhamos. Nossa nova ¨vida” é quase que praticamente apenas isso. Precisamos do nosso cérebro para raciocinar, mas nosso coração não bate; gostamos de nossas bocas para engolir coisas, mas não muitos de nós nem língua possuem mais; não sentimos sabor algum, porém gostamos de fazer tudo que nos traga a recordação dos sabores perdidos. Essa é a constatação mais certa acerca de nós.

Permitam-me explicar melhor. Nossos corpos de defuntos continuam em seu processo de putrefação, contudo, de uma forma muito mais lenta. Essa decomposição demora em média de 5 a 7 meses e conseguimos utilizar nossos corpos até certo ponto. Os que conseguem atingir a velhice e a maturidade do post-mortem estão tão decompostos, toscos e suas carnes tão dilaceradas que já não conseguem fazer nada, nem mesmo morrer, desfazer-se, matar-se(alguns pela segunda vez), sonho de muitos. E o pior: seus cérebros já foram reduzidos pelos vermes a um estado de completa inutilidade. Sobrevivem, débeis. Nessa fase, busca-se a morte avidamente – os desolados mais jovens na nova existência, por sorte e também coragem, ainda conseguem desfazer-se.

Depois de alguns meses, simplesmente se apodrece e não se serve mais para nada, como tudo que existe. Somos imortais? O que sei é que somos finitos, e inúteis nessa finitude.

Morremos primeiramente como humanos. A maior parte de nós, antes da ressurreição, chega a ser enterrada, lacrada em nossas caixas sempiternas. È certo que temos rareado, pois o Estado agora quer criar uma lei que obriga todas as famílias a cremarem seus mortos, e muitos, por temor, já seguem essa idéia. Todavia, uma hora, ao meio dia ou à noite, nos damos conta de que ainda estamos vivos e tentamos andar, sair. Debatemo-nos, arranhamo-nos, por algum milagre, escavamos a terra em direção à luz. Eu já vivi essa experiência. Levantei o meu rosto da terra e vi as inúmeras lápides ao meu redor. Os mármores e seus epitáfios se tornaram mordazes diante dos meus olhos que, com esforço, retornavam a ver. Eu sabia o que estava acontecendo. Senti uma fúria e um desconforto imenso por aquela injustiça. Olhei ao redor. Outros olhares aterrados, sujos de terra e lama, eram lançados aos céus, ao chão. Via-se a loucura nos olhos dos novos vivos. O sentimento de desterro invertido, o desespero causado pela reconciliação não almejada. Naquela noite, vi a raiva, a ira, a dor, a confusão e a insanidade. Era um lugar infeliz aquele, como infelizes eram aquelas ressurreições.

Por vezes e vezes voltei ao cemitério para ver os novos ressurretos. São sempre os mesmos olhares, fazendo-me recordar da noite do meu próprio retorno. Por vezes, vejo saindo de sua catacumba alguém que, como humano, fora mutilado. É preciso ter força e vontade para sair de sob o solo. Seres sem pernas que se rastejam, sem olhos, alguns amputados em uma orelha, algumas mãos com um ou dois dedos ausentes emergem de sob o solo ao solo, ao sol... Nunca vi nenhum sem braço conseguir emergir, e já imagino por quê.

Um prazer indescritível percorre o meu corpo nessas ocasiões. Sou um homem quase feliz diante desse divertimento. Sinto espasmos de riso e torno-me quase humano em meu prazer e sadismo.

Mas agora eu preciso ir. Abandonarei esses papéis. Meu amigos chegam e nós precisamos espalhar um pouco de terror entre os vivos odiosos; saquear e ferir. Teremos uma noite de formidável violência. Afinal, pouco tempo me resta ainda e é preciso viver. É preciso viver a todo custo, ó, meus irmãos.

sábado, 19 de julho de 2008

Trilogia dos Tempos Históricos: Futuro

O Vendedor do Mar

Pelo tempo de meu nascimento, havia na província um velho homem que, perambulando de aldeia em aldeia, anunciava a todos os ares ser ele o vendedor do mar. Talvez por jamais haver encontrado ninguém digno ou rico o suficiente para pagar pelo excelente produto, habituei-me desde pequeno a vê-lo passar de tempos em tempos, carregando sempre o mesmo discurso, trazendo sempre, da boca aos ventos, a maravilha da sua oferta.

Precisamente no dia do meu aniversário de dez anos, enquanto brincávamos eu e meus amigos nas colinas altas, eis que o ouço dizer pela primeira vez o valor que desejava obter pelo mar. Era uma soma vultosa! Considerando, todavia, a extensão do objeto, impossível haver preço mais exatamente justo.

Embora não houvesse ali ninguém além de nós, crianças incompletas, vendo o velho homem bradar acerca do mar àqueles que desejassem alcançá-lo, por incalculável quantia e extrema honradez, pareceu-me que aquilo fora dito tão somente a mim – e talvez fosse eu, dentre todos os presentes, seu único ouvinte. Sabia que, no final, sem falta, se eu o merecesse, tomaria das mãos do homem o mar, que mo daria de bom grado, pelo preço justo. Sentia como se suas Palavras fossem dirigidas exclusivamente a mim, trazidas pela mesma brisa que agitava as ondas.

Assim, a partir daí, sempre que avistava o mar, do alto das colinas, sempre que nele me banhava ou sobre ele navegava nos pequenos barcos pesqueiros, sempre que avistava as ondas assombrosas e altivas rebentarem-se na areia diante dos meus pés, sempre que degustava um saboroso peixe ou fruto do mar – que rapidamente se tornaram meus alimentos favoritos -, invadia-me a ânsia pelo dia em que tudo aquilo poderia ser chamado claramente de meu; agitava-se em mim a firmeza da necessidade de diversas obrigações que deveria me impor se quisesse receber, das mãos do vendedor do mar, a posse daquela existência. Cresci então fascinado por aquela oferta; ansioso para tomar sobre mim os encargos dessa fantástica conquista.

Não tive filhos; jamais me casei; não permiti que um instante sequer me desviasse do meu projeto, ou melhor, para ser mais correto e sincero, fui aprendendo a permitir cada vez menos que eventos e distrações me desviassem deste caminho que reina sobre mim, desconhecido por todos.

Tornei-me rico e bondoso. Sei que todos me considerariam um louco se soubessem da intenção final de cada ação de toda a minha vida e que vêem em minha prosperidade o fim mesmo de meus desejos e atos. Tenho também consciência de que, caso soubessem de minhas inclinações mais íntimas sem que duvidassem da estabilidade de minha sanidade, considerariam uma loucura, isto sim, as freqüentes esmolas que distribuo caridosamente entre os pobres de nossa aldeia. A loucura fez de mim um homem bom; e isto, a eles, seria incompreensível: uma vez que aquilo que desejo é tão grande e de tão caro valor, não seriam um desperdício estes gestos filantrópicos? Contudo, estou convicto de que, para adquirir o meu sonho, terei de apresentar uma vida digna e sensata ao vendedor do mar, pois apenas uma alma nobre pode possuir algo tão imenso.

Com o tempo, tornei-me também reflexivo. Aprendi a admirar o mar, os homens, a criação e a terra, mas sobretudo o mar. Ouvi silenciosamente o homem do mar todas as vezes que por aqui ele passou, sem jamais lhe dirigir Palavra alguma. Acredito seriamente que, por não haver ninguém corajoso ou abençoado o suficiente para assumir as responsabilidades de seu pedido, eu sempre fui o único a escutá-lo.

Agora, avançado em idade e já no fim dos meus dias, como não tive filhos, não tenho dúvidas de que terei de inspirar em alguém o desejo pelo mar após minha morte, quer eu consiga ou não obtê-lo, pois, apesar de rico e bondoso, não sei se os sou o bastante aos olhos do vendedor do mar.

Quando tudo estiver então completado, quando tiver por fim em minhas mãos todo o necessário para apresentar-me a ele como um grande e sublime homem, sei que ele virá até mim, me dará o mar e tomará tudo o que tenho, legando-me o peso do que foi sua posse. Sei que ele não pode cessar sua busca. Entretanto, temo que, antes da chegada desse instante, eu já não me conte entre os vivos.

sábado, 21 de junho de 2008

Um machadiano x Machado de Assis

(Um machadiano em minha vida)

Esse simplório texto que seguirá a você (exclusivamente a você) é mais uma prova de quão grande é o que sinto por ti. Ele também servirá pra esclarecer a você, de acordo à minha visão, como é ter um machadiano em minha vida e a diferença entre um machadiano (o meu machadiano) e o próprio Machado. Que consiga te surpreender muito.
Na tua vida há uma data extremamente importante, dia 21 de julho de 2006, e a partir desse dia, todos os dias 21 foram e serão celebrados, inclusive 21 de junho, que, por coincidência, ou não, foi o dia que teu escritor preferido nasceu (21 de junho de 1839). (Talvez) Por isso, há em você tamanha afinidade por ele. Se estivesse vivo, e se fosse possível, estaria completando hoje 169 anos (faríamos uma festinha privada, eu, você e Ele). Bem verdade, Ele não se alegraria muito em viver 169 anos. Mas esse ano que completamos dois anos juntos, se completam 100 anos de sua morte; acho que Ele se alegrará bem mais completando 100 anos de morte do que quando completou os 18 anos.
Assim como Machado, não tiveste acesso a bons colégios, e, como ele, se tornou um dos maiores intelectuais do país; só que ninguém soube, ainda. Porém, ao contrário do Grande, você não tem tanta simpatia pelo José de Alencar, o que, por sinal, foi uma postura muito bem tomada.
Não tiveste e nunca terás, se depender de mim, como o jovem Brás Cubas, uma Marcela. Sempre te mantiveste quieto e esperançoso em relação aos amores e prazeres do amor. Terás (e tens) uma Carolina Augusta Xavier de Novais, mulher culta com a qual terás um casamento feliz que durará 35 anos (ou mais, dependendo da vontade nossa), e com a morte da tua Carolina, escreverá a ela um poema que a celebrizará, como a Carolina do Grande(quatro anos mais velha). A diferença entre a tua Carolina e a que a o inspirou é que ela te dará filhos; e tu não serás como o Grande, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, que ficou feliz em morrer sem ter tido filhos, muito menos abrirás a boca pra dizer que há um saldo positivo em tua morte: não passarás o legado das misérias da vida a outras vidas.
Mesmo com muito romance em vida, tens um poderoso, porém sutil, humor negro. Levar assuntos politicamente corretos, a existência, o começo e o fim de tudo, a vida, o universo e tudo mais a sério é pedir demais a você e é sempre muito bom rir da desgraça alheia, especialmente se acompanhada de teus comentários exagerados de ironia e sarcasmo que agradam somente àqueles que têm o transcendental dom do (bom) humor, mesmo que negro. E nada mais adequado a Machado que o bom e velho humor negro, se é que me entende. E, pra complementar, uma curiosidade: ambos têm paixão pelo xadrez; é muito desestimulador ouvir você dizer: xeque-mate.
Quanto ao lado pessimista que Machado teve, fica por minha parte, afinal, você não ia conseguir ser tudo isso sozinho. Apesar da tua célebre frase “Alguém sempre tem que se foder mais do que a gente”, cabe a mim ter o poder de colocar e mostrar em tudo o lado ruim e que, quanto maior a sua esperança, maior a sua decepção. Nada melhor do que não esperar, ou esperar o ruim, ou fingir não esperar e ter a boa surpresa. O gosto de esperar e se iludir é amargo. É a vida.
Machado morre quatro anos depois da sua amada esposa, que era quatro anos mais velha. Justíssimo.

Alguns críticos disseram que o Grande era: “urbano, aristocrata, cosmopolita, reservado e cínico, ignorou questões sociais como a independência do Brasil e a abolição da escravatura. Passou ao longe do nacionalismo, tendo ambientado suas histórias sempre no Rio, como se não houvesse outro lugar. A galeria de tipos e personagens que criou revela o autor como um mestre da observação psicológica. Sua obra divide-se em duas fases, uma romântica e outra parnasiano-realista, quando desenvolveu inconfundível estilo desiludido, sarcástico e amargo. O domínio da linguagem é sutil e o estilo é preciso, reticente. O humor pessimista e a complexidade do pensamento, além da desconfiança na razão (no seu sentido cartesiano e iluminista), fazem com que se afaste de seus contemporâneos."
Faço das deles as minhas palavras, a você (exclusivamente a você).



Feliz aniversário, meu amor, feliz 23 meses!
Eu amo você, forever and a day... ♥



µ For now and Forever µ